Eu Visitei Tormes...



O livro de Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, tem dois grandes espaços: Paris (que representa a Cidade, a Civilização) e Tormes (as Serras). As duas personagens principais, José Fernandes, que também é o narrador, e Jacinto, ficaram grandes amigos aquando dos seus estudos em Paris. Mantiveram essa amizade, mesmo apesar de afastados, uma vez que Jacinto se manteve na Civilização (no seu apartamento o 202, nos Campos Elísios) e José Fernandes regressou a Guiães, às Serras.
José Fernandes revisita o seu amigo após sete anos e reencontra-o rodeado de todo o tipo de aparelhos, inovações, milhares de livros e muito luxo, no entanto, Jacinto vive aborrecido, murcho, amolecido. Mas tudo isso vai mudar, a partir do momento em que regressa a Portugal. A viagem foi planeada com todo o cuidado, mas as coisas não correm bem: perdem-se dos criados e perdem as malas e quando chegam ao apeadeiro de Tormes só têm um jornal e pouco mais. A viagem para a quinta (propriedade de Jacinto) teve de ser improvisada e lá arranjam um cavalo e um burro para os dois.
Nas belas descrições das paisagens, sentimos o amor de Eça de Queirós pelas serras e, consequentemente, pelo seu país:
Com que brilho e inspiração copiosa o Divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales poderosamente cavados desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, de um verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar. (…) Por toda a parte a água sussurante, a água fecundante… espertos regatinhos fugiam rindo com os seixos, grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra. (…) Todo um cabeço por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes. Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando – ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. (…) Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. (cap. VIII de As Cidades e as Serras).
Foi com estas descrições na memória que parti para a visita, na companhia das minhas turmas do nono ano e das colegas Vera Esteves e Leonor Ribeiro e o que observei da magnífica paisagem duriense não defraudou as minhas expectativas e só me fez admirar ainda mais este grande autor e esta bela região. Nunca tinha feito antes a estrada entre a Régua e Tormes e cada metro do caminho foi absorvido atentamente. O dia estava magnífico, cheio de sol e com um azul luminoso no céu, ao qual Eça chamaria azul ferrete, tivemos o Douro no nosso lado direito e gradualmente fomos subindo às serras, tendo o rio como pano de fundo lá em baixo. Magnífico! Não há outra palavra. Depois fomos tendo tons de vários verdes desta primavera que nos visitou mais cedo. Quando nos apeámos, respirei um ar fresco e agradável e lá caminhámos em direção à Casa, pelo caminho do Jacinto. Gostei daquelas pedras cheias de história, gostei de ver de perto os objetos pessoais deste grande escritor, de saber da forma meticulosa como fazia a sua escrita e do facto de escrever de pé, tendo uma escrivaninha à sua medida. Gostei dos jardins e provei das deliciosas tangerinas.
Na pausa para almoço, à sombra de uma árvore reli passagens de A Cidade e as Serras e recordei outro grande escritor, Almeida Garrett, que dizia que não há nada que se compare ao ler um livro no sítio ao qual ele se refere:
Se eu for algum dia a Roma, hei de entrar na cidade eterna com o meu Tito Lívio e o meu Tácito nas algibeiras do meu paletó de viagem. Ali, sentado naquelas ruínas imortais, sei que hei de entender melhor a sua história, que o texto dos grandes escritores se me há de ilustrar com os monumentos de arte que os viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram os feitos memoráveis, o progresso e a decadência daquela civilização pasmosa. (…) Cap. XXVI de Viagens na Minha Terra.

Entrada principal da Casa de Tormes - Fundação Eça de Queirós
Paisagem de Tormes - Fundação Eça de Queirós
Fátima Campos - professora de Português


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